quinta-feira, 20 de outubro de 2011

O inconsciente, o consciente e a menina do sótão


"Sonho causado pelo vôo de uma abelha ao redor de 
uma romã um segundo antes de acordar."
                                                            Salvador Dali
        
   Esta manhã acordei atormentada por sonhos de lucidez. A realidade brutal que se revela no fechar dos olhos leva minha mente a navegar em mil conjecturas, que faço questão de esquecer quando estou acordada. Desperta, fujo das questões que me atormentam a alma, tiram-me  a paz e me fazem questionar as fracas premissas nas quais baseei minha vida. Não quero confrontos, nem sangue, nem caos. Não quero incomodar meus entes queridos nem meus amigos com problemas que não são deles, mas meus, apenas meus, não sei lidar com eles, mas são meus e de mais ninguém. 

      Quando durmo, logo minha mente leva-me para a terra do inconsciente, onde habitam as verdades que escondo dentro da cartola e do sobretudo. Lá, não preciso ser nada para ninguém, sou íntegra, o que não significa que seja melhor, pois muitas vezes me vejo fazendo coisas horríveis, fugindo, sempre fugindo, fugindo não sei do quê, talvez de mim mesma. Mas mesmo nos ambientes mais sinistros, mesmo nas situações mais aterradoras, há uma faísca de espontaneidade, de coragem, que me mostra o caminho certo a seguir sem que eu precise racionalizar. 

       Contudo, quando acordo, nesse exato instante de transição entre o sonho e a realidade, o juízo heróico adentra meu mundo consciente e há um choque de realidades, um sentimento muito forte, estrondoso, momento no qual tenho certeza de que estou começando a perder minha lucidez. É algo muito difícil de explicar em palavras (se tento fazê-lo é apenas para tirar a loucura de minha cabeça, aprisionando-a no papel), esse sentimento estranho de estar acordado com sua consciência fora de si. Quero voltar, ficar no mundo inconsciente, pois é muito perigoso habitar o "mundo real" com essa falha de consciência. É perigoso, é assustador, é o início da insanidade. 
      
       Se os sonhos são flashes de estranhas experiências que vivemos apenas dentro de nós, a vida exterior é, comparada a eles, um pesado fardo que carregamos e sempre queremos que mude de configuração, embora temamos essas mudanças. Queremos muitas coisas, mas pouco fazemos para que consigamos todas elas. Nossa querer fica, assim, na abstração, estado metafísico ideal para os sonhos. 

    Tudo que quero parece-me muitas vezes ridículo de querer e lutar, parece-me que nem mesmo uma alma aceitará o peso das escolhas que aquela centelha de juízo onírico impõe para minha vida consciente nos perigosos momentos entre o sonho e a lucidez. E acordar, bem o sei, é morrer, acordar é morrer para o inconsciente tão sensível e só. A loucura rondando... Exige bastante. 
       
       Sei que muitas pessoas não sentem assim, não veem com bons olhos as que sentem e não acreditam nem por um segundo (talvez por um segundo) que seja uma forma correta de se pensar. Sensibilidade extrema? Loucura? O que meu Deus? Esses pensamentos... Eu tento, eu finjo que eles não existem, que não estão ali, que vou acordar, vestir minha fantasia,  mostrar que sou normal, que sou competente, extremamente competente, trabalho, estudo e faço exercícios, mantenho a forma, extremamente compente, pois sim! Às vezes até arrisco dizer que adoro filosofia, literatura, que gostaria de ser escritora, mas é sonho distante, eu digo, e as pessoas apenas olham, elas não me encorajam nem desencorajam, elas apenas olham, não sabem o que dizer. Mesmo permanecendo em silêncio, seus olhares dizem muitas coisas, do tipo: "escritora, você?", "como assim, você prefere ser escritora a juíza?", "por que não vai resolver suas crises existenciais num shopping?". Eu não me abalo, preservo certas partes de minha integridade, independente dos outros, indepedente de mim. Procuro pessoas que possam parecer comigo, talvez elas estejam ali, em algum blog, em algum evento cultural, em alguma faculdade...

     Seria solidão tudo isso? Talvez. Talvez meus disfarces não sejam tão bons em me enganar quando estou sozinha. Quando estou sozinha, a parede nua da sala me diz que também estou nua. Se não faço questão de cobrir a vegonha da parede com um quadro qualquer, como então cobrirei minha vergonha, minha inadequação, minha loucura. Eu que sempre fui sensata, sempre fiz o certo, sempre zelei pela justiça de minhas ações. Serei eu julgada justamente por ter vestido essa fantasia da corretude e não ouvido minha voz interior? Sim, eu me julgo. Frente a mim mesma os disfarces perdem cor, perdem definição, perdem espaço para o inconsciente. Meus olhos - que olham para dentro, enxergam a menina viva, questionadora, corajosa e criativa que tranquei em algum dos armários dos sótãos do inconsciente.
          
         Ela foi ótima na infância e na adolescência, fez realmente diferença, foi verdadeira e feliz. Mas hoje, na vida adulta, esse mundo árido e infértil das leis, a menina teve que definhar, aceitar, acovardar-se. Ela, tão cheia de diversidades, não poderia habitar esse mundo sem cor, sem vida, sem muiteza. Então sua pena foi essa: prisão! Antes tivesse sido sentença de morte, mas não! Ela continua viva, embora seja muito difícil escutar sua voz, que precisa transpassar o armário, percorrer todo o sótão e subir ao consciente. Às vezes ela consegue essa proeza, às vezes sua voz é realmente ouvida, como um simples suspiro, é verdade, mas ela é ouvida e consegue tocar de alguma forma aquela que tomou seu lugar, a fantasiada, competente, quase robótica.
        
      Talvez, no marasmo do cárcere, esteja tramando uma revolução, a revolução dos oprimidos, que até sob o mais absoluto controle sempre mantêm a fagulha da revolta. Essa menina, muito esperta, deve ter percebido a existência desse momento, esse sutil momento entre o inconsciente e o consciente. Quem sabe nesse exato instante se possa ver alguns raios de luz adentrando as frestas de seu armário, ou talvez ocorra um súbito terremoto, um colapso do inconsciente, e ela saiba, por pura dedução, que há uma brecha, uma chance, um instante em que ela pode gritar a plenos pulmões, com todas suas forças, para que quem tomou o controle do consciente descubra que ela ainda está ali, planejando sua revolução secreta
       
       E nesse interstício, o acordar, ocorre um erro de conexão entre o inconsciente e o consciente, no qual habito o "mundo real" no estado de inconsciência - o grito da inconsciência; e a loucura, que espreita todos os conscientes inconscientes, está sentada em minha cama, estendendo a mão para me ajudar a levantar.


                                                                                                        Dhara Gasparini

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